“A simpatia é o ato pelo qual meus irmãos me ajudam a carregar minha cruz, isto é, compartilham ativamente meu destino, participam do nosso destino comum, atestam por sua solidariedade essa comunidade de essência de todas as criaturas que era, segundo Schopenhauer, o fundamento da piedade e, segundo Proudhon, o princípio da justiça.” – Vladimir Jankélévitch (1903-1985), filósofo francês, professor da Sorbonne (de 1951 a 1979), em seus Cursos de Filosofia Moral. Editora Martins Fontes, 2008, Pg. 211.
Qual o segredo de Juliette Binoche? O que explica que ela seja uma atriz tão impressionante, uma autêntica gênia da atuação? Talvez uma parte da resposta esteja na coragem com que ela busca personagens desafiadores. Papéis fáceis não a interessam. É como se ela seguisse o conselho que Rilke oferece em suas Cartas a um Jovem Poeta: “Prefira sempre o difícil, e assim sua vida não cessará de expandir-se. O fato de uma coisa ser difícil deve ser um motivo a mais para que seja feita…”
Ela parece ir à procura de personagens que a conduzam a limites, a abismos, a confrontações existenciais de uma radicalidade que o comum dos mortais não ousaria encarar. Mesmo na escolha dos diretores com quem trabalha, ela demonstra coragem e procura a companhia de artistas nada fáceis como Michael Haneke, Abel Ferrara, Bruno Dumont, Patrice Leconte, Abbas Kiarostami… Longe de querer aparecer na telona sempre sob uma luz favorável, ela aceita ser filmada em um estado emocional “estraçalhado”, caótico, multi-facetado: como quando “encarna” uma mulher estilhaçada pelas dores do luto após perder o marido e a filha em um acidente de carro (em A Liberdade é Azul, de Kieslowki) ou vivendo na pele uma traumatizada e misteriosa artista-mendiga a vagar por Paris como uma Basquiat de saias (em Os Amantes da Ponte Neuf, de Leos Carax).
Antes de filmar seu filme mais recente, De Coração Aberto (de Marion Laine), Juliette Binoche, como contou em sua entrevista ao Estado de São Paulo, foi assistir a algumas cirurgias cardiológicas para sentir em carne viva o que significa estar diante de pacientes com o tórax literalmente escancarado. Foi lá e olhou para dentro de um peito humano que exibe suas entranhas, que está sendo operado pelo bisturi do cirurgião, por mais dura que fosse a experiência, por mais que a aflição e a angústia lhe empurrassem para longe daquele desagradável confronto com a doença e a mortalidade. “Foi barra pesada”, confessa. Mas ela só é uma atriz tão genial pois encara a barra pesada e aceita sentir nos extremos, entregar-se radicalmente mesmo aos afetos mais tenebrosos e terrificantes.
Sem ter uma prévia experiência vivenciada sobre um certo “estado afetivo” que ela deseja comunicar, sem esse confronto com a realidade concreta, Juliette Binoche não poderia atuar: se na tela ela impressiona tanto, nos faz sentir tanto, é pois há afeto autêntico correndo por trás, como uma seiva subterrânea. Os afetos são sua matéria-prima; seu rosto e seu corpo e sua voz são o palco deste carrossel variegado e múltiplo de afetos que se sucedem mas que portam sempre uma marca vigorosa de autenticidade.
Talvez não haja outra atriz viva que eu admire tanto, e com certeza a razão não está somente na beleza deslumbrante que ela tem em profusão e que o envelhecimento não pôde fazer fenecer: como Liz Taylor ou Nicole Kidman, Binoche dá a sensação de que o envelhecimento nada pode contra sua beleza, já que esta emana de outra fonte que não a mera quilometragem baixa do corpo… Emana, talvez, da radiância de uma existência vivida não somente sem medo dos afetos, mas muito mais numa entrega quase devocional a eles, num mergulho na multiplicidade do mundo afetivo que existem poucos atores na história do cinema que tenham feito de um modo tão genuíno e cheio de audácia.
Juliette Binoche expande a consciência da humanidade quanto às cores do arco-íris do afeto a ponto de jamais sermos capazes de acreditarmos que elas se reduzem a sete. São bem mais que sete (quiçá até bem mais que setenta!) as cores do arco-íris dos afetos: Juliette Binoche é alguém que surfa neste colorido, que sabe ir do mais sombrio negrume ao êxtase mais beatífico, que flui através das emoções mostrando que entre os pólos existe todo um oceano, e nele infindáveis ilhas… Juliette Binoche, se pedíssemos para que ela nos dissesse quantos são os afetos que existem, talvez nos respondesse: “Eu sempre perco a conta.”
Depois de vermos esta mulher no cinema, qualquer leitura maniqueísta de mundo nos parece um logro, uma balela, uma mentira. Ela é a encarnação viva da multiplicidade. Não mais acreditamos ser possível compreender os atos humanos a partir de esquematismos simplificadores: 7 pecados capitais, 3 virtudes teologais, ou mesmo a infantil divisão em dois “Reinos”, simplista e redutora, característica da cisão cristã entre o domínio do pecaminoso e do santo, do celestial e do diabólico. Enfim: eis alguém que sabe que os afetos são bem mais numerosos do que suspeita a vã filosofia daqueles que querem julgar os homens como se a única rotulação possível para eles fosse “bons” ou “maus”, “mocinhos” ou “vilões”. Ela demole e faz ruir qualquer visão-de-mundo que queira sustentar que os homens ou estão com Deus, ou estão com o Capeta.
Capaz de atuações desprovidas de moralina, plenamente consciente da estreiteza simplista do maniqueísmo, Juliette Binoche parece acreditar na infinidade dos afetos assim como Van Gogh parecia acreditar na infinitude das cores – se perguntássemos a ele, “quantas cores existem?”, ele talvez nos respondesse: “Nunca consegui contá-las, assim como são para mim incontáveis as estrelas que povoam a noite!”
O que talvez me faça empatizar tanto com ela, e gostar tão imensamente de tantos filmes dela (em especial A Viúva de Saint Pierre, Cópia Fiel, A Liberdade é Azul, Amantes do Ponte Neuf, Elles, A Insustentável Leveza do Ser…), seja este “leque” tão aberto de emoções que ela consegue “acessar” e comunicar. Ela vai à procura de vivenciar os estados afetivos, mesmo os mais dolorosos e angustiantes; não foge do medonho, do trágico, do destrutivo; vai à beira do abismo, às vezes flerta com a loucura; também sabe ser deprimida, estóica, epicurista, socrática; pode ser serena e irascível, ferida e invulnerável, caída-ao-chão e triunfante… Ela é o desespero de qualquer um que seja de mentalidade demasiado “classificante”.
É através de tamanha multiplicidade de vivências e afetos, que ela desfila frente a nossos olhos através destas personagens sobre os quais ela infunde vida, que ela acaba nos impactando a sensibilidade a expandir-se para além de suas estreitezas costumeiras. Descobrimos que somos mais múltiplos e complexos do que pensávamos. Me parece até que uma das vocações do cinema francês, desde Godard, Truffaut, Rohmer, Resnais, têm sido um pouco esta: a de sublinhar a complexidade humana, sempre em protesto contra a vertente mais comercial do cinema, que apóia-se em estereótipos fáceis para a produção de suas mercadorias vendáveis e que apela tão comumente para a comodidade de um happy end moralista onde vilões sejam punidos e os bons recompensados com um “felizes para sempre…”. Acossado, por exemplo, já trazia o gosto amargo mas tonificante das palavras de Faulkner: “entre o sofrimento e o nada, escolho o sofrimento.” Não se trata de mentir sobre a vida, mas pintar um retrato o mais próximo possível de sua complexidade e riqueza cromática real.
A lição de Faulkner, como a leio, é que entre a vida, necessariamente recheada de dores, e uma morte que nada nos deixa a sentir e que nos reduz à insensibilidade, os artistas genuínos, me parecem, dizem “sim!” à dolorenta realidade de sentir. Juliette Binoche é uma sábia do sentir e uma professora de expansão da sensibilidade; quando a assistimos e nos deixamos emocionar por ela, as capacidades empáticas que temos em nós são exercitadas, como se fôssemos a uma academia dos afetos para vê-los “malhados”, isto é, forçados a retirarem da inação seus músculos. Esta artista brilhante escancara múltiplas portas em seu próprio peito e, de coração aberto, exibe diante de nós um leque tão amplo dos sentimentos que não podemos evitar: ampliam-se também os nossos.
E como não simpatizar com uma atuação que parece se confundir com uma autêntica vivência? Atuar = vivenciar, parece pensar Binoche. E sua atuação me assombra não só pela quantidade imensurável de beleza que emana dela, mas por abrir no horizonte a percepção do arco-íris de infinitude cromática que é Reino dos Afetos, os múltiplos e sempre moventes afetos! Por isso estou convicto de que esta artista magistral tem muito a ensinar à humanidade, ao chamado homo sapiens – que, longe de poder ser definido por sua universal sapiência (com quanta frequência somos tolos e insanos, irados e ciumentos, gananciosos e exagerados, descabidos e inconsequentes!), poderia ser muito melhor definido como uma criatura senti-pensante, como diria Eduardo Galeano.
Juliette Binoche nos convida a substituir a noção de homem racional pela de pessoa senti-pensante. Em seu fundamento existencial mesmo, desde a raiz de nosso ser, somos criaturas que sentem e que não podem “guardar no armário” seus afetos para pensar “friamente” ou “com completa pureza”. A Razão Pura é só uma fantasia delirante de filósofo, e por trás dela encontram-se muitos afetos! Engana-se o filósofo, o cientista ou o político que pensa poder alcançar a “neutralidade afetiva absoluta”, esta quimera positivista. Além do mais, como Nietzsche denunciou tão eloquentemente em O Crepúsculo dos Ídolos, “todos os velhos monstros morais são unânimes na opinião de que il faut tuer les passions“, isto é, “é preciso matar as paixões”. Juliette Binoche, antípoda deste moralista denunciado por Nietzsche como monstruoso e que deseja um ser humano purgado de paixões, como se essas fossem impurezas, como se fossem sintomas de um mal d’alma ou de um pecado, é o mergulho dado de bom grado no cosmos caótico, variegado e diverso dos afetos.
Binoche é uma força viva, em plena atividade, que milita contra o embrutecimento sensível daqueles que querem ser meramente racionais, calculistas e economicacamente eficientes. É a arte de gente como Juliette Binoche que nos garante que estamos, felizmente, bem providos de obras que nos ajudam a jamais deixar atrofiar esta capacidade não só essencial à nossa sobrevivência, como também um dos charmes maiores do viver: a ampliação da consciência e da capacidade afetiva. “Aniquilar as paixões e os apetites”, dirá Nietzsche, “nos parece hoje apenas uma forma aguda de estupidez. Não admiramos mais os dentistas que arrancam os dentes para que não doam mais… Arrancar as paixões pela raiz significa arrancar a vida pela raiz… Só se é fértil ao preço de ser rico em contradições; só se permanece jovem se a alma não sente preguiça, não anseia pela paz… A realidade nos mostra uma riqueza encantadora de tipos, a exuberância de um pródigo jogo de formas…”
Juliette Binoche é, sobretudo, uma criatura capaz de despertar da letargia e do sono esta capacidade em nós de empatia ou simpatia que, como lembra Jankélévitch, muitos filósofos consideram como a raiz da piedade e o princípio da justiça – e sem a qual jamais experienciaríamos o que é amar.
Filmografia Recomendada:
Artigo originalmente publicado no Cinephilia Compulsiva.
Publicado em: 27/04/13
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
Deslumbrante o texto sobre Juliete Binochet.
Parabéns!
A Casa de Vidro Ponto de Cultura e Centro de Mídia
Graça
Comentou em 28/07/15